Eu abri minha conta no Twitter em fevereiro de 2008 (na realidade, meu amigo Bruno Carvalho abriu uma conta em meu nome para me forçar a usar aquela rede, já que até então, habituado ao espaço irrestrito do site e do blog, eu não via sentido em publicar posts com 140 caracteres). Os primeiros meses foram inconstantes à medida que eu experimentava o formato, mas já no ano seguinte eu havia me transformado naquilo que os especialistas em redes sociais chamam de heavy user, tuitando várias vezes ao dia.
De vez em quando, algum limite da minha saúde mental era atingido e eu me afastava temporariamente, mas a ideia de abandonar de vez o Twitter era algo que se tornava cada vez mais absurda - principalmente com o crescimento da base de seguidores, já que, como alguém que depende da divulgação constante do trabalho para sobreviver, eu não poderia simplesmente deixar para trás os quase 300 mil seguidores acumulados ao longo dos anos.
No entanto, desde que a rede foi comprada por Elon Musk, a permanência naquela plataforma foi exigindo sacrifícios cada vez maiores em troca de retornos cada vez menores: não apenas meus tweets deixaram de chegar na timeline das pessoas que me seguiam como qualquer post contendo um link era basicamente ignorado pelo algoritmo. Ao mesmo tempo, o nível de toxicidade do Twitter foi atingindo níveis estratosféricos, impulsionando perfis que propagavam ódio, preconceito e fake news ao mesmo tempo que escondia ativamente aquilo que as pessoas que eu havia escolhido seguir publicavam.
Eu já tinha consciência de tudo isso há algum tempo, mas foi preciso o banimento da rede no Brasil para que eu me visse forçado a aceitar estes fatos; é como se Alexandre de Moraes tivesse me internado à força numa clínica de reabilitação - algo que, admito, vejo agora que precisava.
Desde então, tenho dado prioridade ao BlueSky e, em menor escala, ao Threads (que, em nível de toxicidade, não fica tão atrás do Twitter, mas ao menos parece ter um número de bots bem menor que a rede de Musk). Algo que notei quase de imediato foi a diferença no engajamento: embora tenha cerca de 20 mil seguidores no BlueSky, os resultados ao postar um link são incrivelmente melhores do que no Twitter - e diversas pessoas que me seguiam naquela rede disseram que há meses não viam um tweet meu em suas timelines (já o Threads tende a esconder posts com links). Além disso, há uma atmosfera bem mais cordial no BlueSky, o que me fez perceber que a falta que eu sentia de entrar no Twitter estava associada à raiva que eu experimentava ao fazê-lo, o que significa que eu havia me tornado dependente dos sentimentos negativos que começava a viver já ao logar no site.
Dito isso, o objetivo deste post não é simplesmente o de descrever minhas impressões pessoais sobre o Twitter, mas para argumentar - com a ajuda do vídeo que incluirei mais abaixo - como a ideia de que é preciso permanecer naquela rede para “furar a bolha” e ajudar a esclarecer mentiras é algo tolo. A verdade é que o Twitter pós-Musk é uma bolha impenetrável que foi planejada para disseminar perfis e ideias da extrema-direita e esconder qualquer conceito progressista. O único resultado que permanecer ali trará é o crescimento cada vez maior da influência de Elon Musk através dos números de acesso de sua plataforma - e é bem mais provável que usuários mais ingênuos sejam cooptados pela extrema-direita do que perfis direitistas sejam convertidos por causas progressistas. É bom lembrar sempre que o ódio é mais eficaz para propagar ideias, não sendo acaso que é isto que os algoritmos das principais redes favorecem.
Mas voltando às evidências de que o Twitter hoje não é mais um espaço que deve ser frequentado por quem despreza a extrema-direita: interessado em comprovar esta tese, o youtuber D´Angelo Wallace decidiu criar uma nova conta naquela rede e analisar como o algoritmo se comportaria. Depois de estabelecer um perfil a partir do zero, ele respondeu às primeiras perguntas feitas pelo Twitter para teoricamente decidir o que seria exibido em sua timeline: depois de marcar “música”, “entretenimento”, “artes & cultura”, “viagens” e “animação & quadrinhos”, ele foi direcionado a uma tela na qual era obrigado a escolher ao menos um perfil para seguir. A primeira opção, @Crunchyroll, era dedicada a animes, mas a segunda era… sim, @ElonMusk. Como se não bastasse, outras opções traziam perfis de extrema-direita, incluindo o de Donald Trump e o de Laura Loomer, que se descreve como “ativista política de extrema-direita”.
Valendo lembrar, aqui, que em nenhum momento D´Angelo colocou “política” entre seus interesses.
Passado o processo de inscrição, a aba “Para você” do Twitter se abriu para o novo usuário pela primeira vez. E adivinhem só? Era totalmente dominada por tweets de Elon Musk, que D´Angelo não seguiu. Além disso, surgiram também tweets elogiando Joe Rogan (podcaster anti-vax e comediante stand-up medíocre) e atribuindo a este uma frase de Thoreau, posts sobre como a masculinidade estava sob ameaça nos Estados Unidos e, claro, outros contendo homofobia e transfobia.
Ao recarregar a página, surgiu a recomendação de que ele seguisse - surpresa! - @ElonMusk, além de mais posts pró-Trump e anti-Kamala Harris. Perfis contendo “MAGA” em seu nome e outros com retórica racista e carregada de teorias de conspiração também foram exibidos - algo espantoso, já que - vale ressaltar - em nenhum instante D´Angelo indicou interesse por estes tópicos. Como se não pudesse ficar pior, a seguir o repugnante Andrew Tate, acusado de exploração sexual, tráfico humano e estupro, ganhou destaque na página inicial da rede.
Determinado a treinar o algoritmo (que já deveria ter alguma noção dos interesses do novo usuário), D´Angelo fez pesquisas no sistema de busca do Twitter por termos como “obras de arte”, “filmes” e “video games” (o primeiro resultado foi um tweet atacando Kamala Harris e Oprah Winfrey dizendo que, juntas, eram um pesadelo típico de Jogos Vorazes - ou seja: o sistema pegou a palavra “games” e destacou um tweet aleatório que a continha e atacava democratas). Já beirando o desespero, ele pesquisou por “bichinhos bonitinhos” e seguiu uma conta dedicada a criaturas engraçadinhas dos animes. A seguir, recarregou a página inicial do Twitter.
E o primeiro tweet era um ataque a um departamento governamental partindo de uma conta que trazia na bio a descrição de como os filhos não frequentavam a escola (eram “homeschooled”) e de como a dona do perfil tem “esta estranha crença de que homens são homens e mulheres são mulheres”.
Seguir um perfil de criaturinhas animadas levou a um tweet contendo transfobia.
Além, claro, de posts sobre cristianismo.
Cada vez mais frustrado, o passo seguinte de D´Angelo foi passar a clicar nas opções “não estou interessado neste tipo de post”. Não adiantou: logo surgiu um tweet de Elon Musk (como sempre) defendendo Trump da acusação de racismo. O passo seguinte foi selecionar “não estou interessado em Elon Musk” - e ao recarregar a página… o primeiro post era de Elon Musk, seguido por outro de um perfil “Gays por Trump” e um terceiro divulgando teorias conspiratórias sobre como Michelle Obama é, na verdade, um homem (e que D´Angelo logo aponta se tratar de um post simultaneamente misógino, racista e transfóbico). Outro refresh na página resultou em recomendações para seguir Elon Musk e mais posts anti-Kamala Harris e contendo xenofobia.
Era hora de uma medida extrema: depois de pesquisar “Pokemon”, D´Angelo seguiu dezenas de contas que traziam a palavra como nome do perfil (“Pokemon Go News”, “Pokemon Detective Pikachu”, etc). Pela primeira vez, ao recarregar a página inicial, os posts traziam principalmente imagens de animes (predominando pokemons) - e para garantir que o algoritmo entenderia seu interesse, ele curtiu todos estes posts. Para testar o resultado, recarregou pela enésima vez a timeline, que continuou dominada por Pokemons… até surgir um post de um sujeito atacando alguém por usar máscara de proteção em público. O autor do post também se identificava como “gay trumpista” e D´Angelo o bloqueou.
Apenas para vê-lo ressurgir na timeline momentos depois. Persistente, ele seguiu curtindo posts engraçadinhos e bloqueando perfis odiosos - incluindo o de Elon Musk e outros igualmente defendendo transfobia. Aliás, ele não apenas bloqueou estes perfis como clicou várias vezes na opção “não estou interessado no assunto deste post”.
Foi quando os anúncios começaram a surgir em sua timeline - e sempre disfarçados como respostas a outros tweets, sem indicação clara de que eram publicidade. Mais blocks e, então, o teste final: recarregar a página inicial pela última vez e verificar se ao menos os dez primeiros tweets exibidos seriam inocentes/positivos. Sim, este é o nível de exigência que ele foi obrigado a ter; mais do que isso seria pedir demais.
E teve sucesso: nada de tóxico apareceu na primeira dezena de posts.
Mas o décimo segundo era escancaradamente transfóbico.
E então D´Angelo desistiu. “Elon Musk transformou completamente esta plataforma em uma câmara para ecoar posições pró-Trump, anti-trans e racistas”, afirma em certo ponto do vídeo, confirmando esta conclusão ao ver surgir um tweet afirmando que “Kamala Harris transformará os EUA em um país comunista, fazendo tudo ficar pior do que na Coreia do Norte e na Alemanha Oriental” e apontando que o tal tweet havia sido retuitado por Elon Musk. “Ter o CEO de uma rede social compartilhando este tipo de coisa é insano; nenhuma outra plataforma tem isso. Ou, no mínimo, se outras plataformas têm o interesse de empurrar conteúdo odioso para todo mundo, ao menos disfarçam melhor. (…) Toda vez que entro no Twitter, tenho esta sensação ruim de que todas as interações estão tentando me fazer ficar com raiva de alguma coisa. (…) Eu realmente acredito que o Twitter é a pior rede social no momento.”
O excelente vídeo de D´Angelo chega então à sua conclusão impecável:
“Não fiz esse vídeo para dizer que tudo no Twitter é ruim - vejam os pokemons! -, mas para demonstrar como é fácil entrar ali, ficar realmente com raiva de alguma coisa que não faria diferença se você tivesse deixado de ver e então passar o resto do dia sem perceber que você perdeu 1% da sua saúde mental. (…) Eu diria que você tem uma responsabilidade para com você mesmo(a) de consumir coisas que não sejam sempre deprimentes. Caso contrário, quando você for realmente confrontado por questões sérias, não estará em condições de lidar com estas. No Twitter, eu ficava com raiva o tempo todo porque a rede ficava me mostrando coisas irritantes e não percebia que eu estava sendo monetizado por pessoas que só queriam me ver nervoso. “
Assino embaixo. E afirmo que, por esta razão, não voltarei a usar o Twitter mesmo quando este inevitavelmente ficar novamente disponível no Brasil. De agora em diante, programarei exclusivamente posts (usando apps “terceirizados”) que contenham links para o meu trabalho (e que não serão vistos por ninguém) e, assim, não precisarei sequer entrar na plataforma para divulgá-los e não gastarei um segundo sequer lendo a timeline ou as menções publicadas ali.
Estou banindo o Twitter do meu cotidiano. E estou muito inclinado a dar unfollow nas outras redes em quem continuar a utilizá-lo de forma ativa.
O twitter já vinha em franca decadência, a aquisição pelo Musk foi apenas o 'point of no return'. Só queria entender se esse comportamento de algoritmo é só na aba 'Para você' ou se aplica também a que em tese seria cronológica (eu ao menos tinha essa ilusão)
Acho que esse bloqueio forçado no Brasil foi até positivo. Deu pra perceber que ele não faz falta de verdade, e que há alternativas até melhores.