1 milhão de reais por 10 segundos de filme
A história do pouso do Concorde em A Fogueira das Vaidades
Cinema é uma arte cara. Por isso, ao longo das décadas, várias estratégias de produção foram sendo criadas para tentar minimizar os custos de realização, o que incluiu a ideia revolucionária de Thomas H. Ince de criar e organizar um estúdio que contivesse, em um mesmo espaço, todas os departamentos envolvidos no processo - uma lógica que praticamente criou a figura do produtor distinta daquela do diretor.
Neste sentido, um dos elementos fundamentais em uma grande produção é a Segunda Unidade, que, operando com uma equipe reduzida, é responsável por filmar planos e cenas que não envolvam (ou não precisem envolver) o elenco principal: quando você vir o plano-detalhe de uma mão escrevendo algo, um plano aéreo mostrando a cidade na qual a ação se passa ou um carro percorrendo uma estrada, há quase 100% de chance de que esteja vendo imagens capturadas pela Segunda Unidade, que tem seu próprio diretor (e diretor de fotografia). Aliás, há ocasiões em que alguns dos momentos mais inesquecíveis de um projeto partiram não do diretor cujo nome vem acompanhado das palavras “um filme de”, mas de outro cuja identificação encontra-se enterrada no meio dos longos créditos finais.
Veja, por exemplo, a introdução de A Fogueira das Vaidades presente no vídeo acima: totalmente concebida pelo diretor de segunda unidade Eric Schwab, que contava com a total confiança de Brian De Palma (que o encarava como um pupilo), a sequência (rodada com o uso de timelapse) exigiu uma longa e cuidadosa preparação e já deixava claro para o público como o filme retrataria acontecimentos em um universo de glamour no qual tudo (poder, fortuna, amor) é efêmero.
No entanto, há um outro plano rodado por Schwab para A Fogueira das Vaidades que acabou se tornando tão reconhecido - apesar de durar apenas dez segundos - que trouxe inclusive oportunidades profissionais até então inéditas para o jovem diretor.
E tudo teve início com as seguintes palavras no roteiro escrito por Michael Cristofer:
EXT - AEROPORTO JFK - NOITE
O céu é um labirinto de aviões decolando e pousando.
Reunido com De Palma para definir o que caberia à Segunda Unidade, Schwab perguntou ao mentor se poderia rodar aquela introdução da cena na qual finalmente conheceríamos a personagem de Melanie Griffith, que chegava de viagem e era recebida no aeroporto pelo protagonista vivido por Tom Hanks. A resposta de De Palma não poderia ter sido mais típica de um diretor que, estudioso da História do Cinema, conhecia todos os clichês visuais de sua mídia:
- O dia em que eu incluir um avião pousando em um dos meus filmes será o dia em que me aposentarei.
Isso não intimidou Schwab, que apostou cem dólares que o cineasta incluiria o plano no corte final do projeto - uma aposta imediatamente aceita por De Palma.
E foi assim que começou um projeto que duraria meses. A primeira decisão do rapaz foi a de que o avião escolhido por Maria, personagem de Griffith, seria um Concorde, que era então o modo de viagem favorito da elite econômica mundial. Determinado também a incluir na passagem algo que identificasse o aeroporto como sendo o de Nova York, Schwab definiu que o plano deveria trazer a pista de pouso e o Empire State Building - e de preferência com o sol ao fundo para criar um visual impactante e jamais visto neste tipo de transição.
Porém, para que isto fosse viável (e lembrem-se de que estamos falando de um filme rodado em 1990, bem antes que os efeitos digitais se tornassem padrão na indústria), tudo deveria ser calculado em detalhes: a posição da câmera, o ângulo de pouso do avião e o momento preciso do dia no qual tudo se alinharia.
A parte mais fácil foi negociar com a Air France, que operava os voos feitos pelo Concorde, para que a companhia aérea cedesse um avião (e sua equipe) e concordasse em pousá-lo no instante e no ângulo necessários - e a empresa aceitou fazê-lo por 40 mil dólares - cerca de 100 mil dólares nos valores atuais (o equivalente a 563 mil reais).
A seguir, Schwab entrou em contato com um sujeito que havia criado um programa capaz de determinar a posição exata do sol em qualquer lugar do planeta e em qualquer horário determinado, descobrindo que o pôr do sol ideal para seus propósitos ocorreria dali a seis meses, no dia 12 de junho. A partir daí, ele convocou o gerente de locações Bruce Frye para que o ajudasse a encontrar o ponto perfeito para posicionar sua câmera - e com a autorização dos administradores do aeroporto, a dupla caminhou em torno das várias pistas do JFK durante várias semanas até chegar a uma decisão.
Considerando os gastos com os equipamentos, a equipe e a Air France, o plano custaria aos produtores 80 mil dólares (200 mil dólares atuais - ou 1,12 milhão de reais). Por dez segundos de filme.
E ainda assim o mais provável era que tudo desse errado, já que, de acordo com os cálculos de Schwab, o sol só chegaria à posição perfeita dois minutos antes de sumir no horizonte - porém, considerando a limitação do campo definido pela câmera, na prática ele teria apenas 30 segundos para capturar a imagem. Assim, qualquer problema com as câmeras (ele utilizaria cinco rodando ao mesmo tempo) ou com o avião arruinaria tudo.
Ah, sim: e não apenas o piloto do Concorde teria que pousar no ângulo exato como a torre de controle do aeroporto teria que dar autorização para que ele o fizesse sem hesitar um só segundo.
Depois de muitas negociações, o órgão responsável pelo JFK assinou um acordo com os produtores no dia 30 de abril, quando faltavam menos de duas semanas para a data apontada pelos cálculos do especialista.
No dia anterior ao da filmagem, Schwab passou horas com seu diretor de fotografia observando os pousos de vários Concordes e testando lentes diferentes, concluindo que precisariam de uma com grande distância focal (e que teve que ser enviada de Los Angeles ainda naquela noite).
O dia 12 de junho de 1990 amanheceu sem nuvens em Nova York - uma ótima notícia para o diretor de 32 anos de idade. No meio da tarde, ele se reuniu com o piloto enviado pela Air France e que tinha viajado de Paris especialmente para o projeto; além do ângulo preciso, o piloto também teria que tocar o solo no ponto exato da pista.
Vinte minutos antes do pôr do sol, o Concorde decolou e permaneceu voando em torno do aeroporto até que a torre concedesse a permissão de pouso - uma permissão que deveria ser dada dez minutos antes de o sol desaparecer, mas que acabou atrasando cerca de dois minutos. De repente, o funcionário da Air France encarregado de trabalhar com os produtores avisou que o avião estava se aproximando e Schwab gritou para que as câmeras começassem a rodar - até que, observando através de binóculos, percebeu que o avião em questão era um Boeing e gritou “corta!”. O mesmo equívoco ocorreu outras duas vezes.
E então o Concorde apareceu.
Durante os momentos seguintes, Schwab acreditou que havia perdido a janela determinada pelos cálculos e que seu plano havia fracassado. O sol estava sumindo rapidamente e provavelmente seria tarde demais quando…
… o Concorde tocou a pista exatamente no ângulo e no ponto combinados.
E De Palma não apenas incluiu o plano no filme (e pagou a aposta) como mencionou o trabalho de Eric Schwab em várias entrevistas durante o lançamento do longa. Que foi um enorme fracasso de público e crítica.
Mas que nos presenteou com isso:
(Toda esta história é narrada pela jornalista Julie Salamon em seu excepcional livro “The Devil´s Candy: The Anatomy of a Hollywood Fiasco.)
Há uns poucos meses não lia nada seu e é sempre bom voltar a me encantar com as minúcias de algo que eu desconhecia completamente; ficar besta como "isso" existe, eu não sabia e é tão legal! Como é massa o mundo do cinema! Deu até vontade assistir ao filme fracassado (amo tb os fracassos!), mesmo que eu provavelmente já tenha visto, como fã incondicional de Tom Hanks e rata de locadora.
Mas essa musiquinha fez tudo pra estragar a cena, hein... pelamor