(Há cerca de dois anos, publiquei este fio no Twitter, mas como cansei de produzir conteúdo de graça para Elon Musk, Mark Zuckerberg e para o Google, vou reproduzi-lo aqui. Aliás, uma das funções deste blog será arquivar textos que criei para outros espaços que não me pertencem. Além disso, na última semana por algum motivo duas ou três pessoas me perguntaram justamente sobre isso no Twitter e no Instagram.)
No fim de 2020, Francis Ford Coppola lançou uma nova versão de O Poderoso Chefão Parte III, que recebeu o subtítulo Coda: A Morte de Michael Corleone. Resolvi, então, enumerar as diferenças entre as duas e o que achei delas.
Há muitos spoilers abaixo, evidentemente:
Em primeiro lugar, é preciso dizer que Coppola não alterou tanta coisa como poderíamos supor - e o filme ficou menor: a versão original tem 2h50 (com créditos finais); a nova, 2h38. Não identifiquei nada que tenha sido acrescentado, mas, como já poderão ver, vários elementos foram removidos; a maior parte destes, porém, consiste em finais de cena, já que Coppola parece ter resolvido enxugar ao máximo a narrativa e, assim, quando uma cena cumpre sua função, ele elimina o restante. Há instantes nos quais isso não faz diferença e outros em que faz alguma.
Um exemplo: quando Don Altobello contrata o assassino para matar Michael, a nova versão encerra a cena no instante em que o sujeito pergunta quem é o alvo, ao passo que no filme original, a conversa se estendia até Don Altobello cheirar um pedaço de pão e comentar como o azeite siciliano é único. A rigor, este final é necessário? Não. Mas dava uma cor adicional à cena e a Don Altobello. Seria algo que eu teria mantido por essa razão. Já em outro instante, quando Michael está ao lado do corpo de Don Tommasino, Coppola tira dois momentos diferentes: um que não faz falta, mas outro que lamentei (embora entenda a lógica da remoção). O primeiro é a fala de Michael quando Vincent chega: "Más notícias? Diga já." Em vez de Michael dizer isso, Coppola já corta para Vincent falando o que descobriu. Ok, ficou mais enxuto, mais direto. É um corte de uns 2 segundos, mas não faz diferença. Então ok.
O outro eu acho triste.
Antes da chegada de Vincent, Michael "conversa" com o corpo de Don Tommasino e pergunta "Por que você foi tão amado e eu sou tão temido? Eu não fui menos honrado. Eu quis fazer as coisas direito. O que me traiu? Minha mente? Meu coração? Por que me condenei?". Tudo isso foi removido. Acho triste porque gosto desse momento em que Michael é levado pela morte do amigo a fazer um balanço da própria vida e percebe como fracassou. Acho que a lógica de Coppola ao remover foi manter a introspecção de Michael e, claro, não repetir o momento emocional da confissão a Lamberto - afinal, Michael já havia expressado sua contrição ao cardeal. Ainda assim, eu gostava desse momento. De todo modo, Coppola manteve a fala de Michael sobre jurar pelos filhos que se tiver mais uma oportunidade de se redimir o fará.
Outros momentos removidos do filme: no hospital, não há mais a visita de Altobello, quando Michael "pedia ajuda" a este (falsamente, pois já sabe que é um traidor) e combinavam de ir à Sicília. Gosto do personagem e amo Eli Wallach, mas não é algo que afeta o filme. Outra cena que caiu é aquela em que, num pequeno altar dentro do hospital, Connie, Vincent e Al Neri conversam sobre o que fazer e Connie dá a ordem para que Vincent mate Joey Zasa. Eu gosto da cena, que estabelece Connie como uma Lady Macbeth, mas pouco depois, quando Zasa já foi morto e Michael está fulo porque agiram sem sua ordem, Vincent ainda diz que recebeu o "ok" de Connie, então a atitude desta é preservada na nova versão. Apenas não vemos o momento. Mas eu teria deixado (até por gostar de ser em silhuetas).
Já na cena da cozinha, notei um detalhe curioso: Coppola acrescentou uma fala quando Michael passa mal. Agora, ouvimos Connie dizer "é a diabetes dele!". Possivelmente, Coppola sentiu que havia quem não entendesse o que estava acontecendo com Michael. Ok, tudo bem. (Só pra salientar: Coppola não muda a montagem da cena; ele acrescentou a fala de Connie via ADR.)
Outra passagem rápida removida: quando Michael vai conversar com Lamberto, antes víamos Don Tommasino ser carregado para fora do carro; agora isso não existe mais e a cena já começa com Michael e Lamberto andando no pátio. Não faz muita diferença.
Agora vamos a três momentos que foram removidos e que eu aprovo com veemência:
1) Depois que Altobello apresenta Vincent a Luchesi e estes se afastavam, víamos Altobello caminhar em direção à câmera satisfeito consigo mesmo e falando sozinho. Não mais.
2) Quando Michael, Mary e Tony conversam em um pátio e Michael proíbe a filha de ver Vincent, a cena agora termina quando Mary diz "não". Na versão original, ela repetia o "não" com mais veemência e depois saía correndo. Era artificial e realmente agora está melhor.
3) Durante o atentado à Comissão, quando um dos Dons era metralhado, o víamos gritando, com a boca cheia de sangue: "Joey Zasa, seu filho da puta!". Eu sempre DETESTEI esse plano. Além de falso, era uma forma óbvia de o filme dizer quem havia planejado tudo. (E nem foi Zasa de fato.) Agora vemos o mafioso caindo, mas não há mais o grito. Ótimo.
Outro breve momento cuja saída cria um novo sentido: na cena com Michael e Vincent (na sala com o corpo de Tommasino), Vincent pedia autorização para agir, Michael acenava que sim e Vincent dizia pra Connie: "It´s done". Agora, Michael não faz mais o aceno positivo. Quando Connie entra, ele já diz a esta que "tentou" e ela responde que "Não importa, Vincent sabe o que fazer". E aí Michael nomeia Vincent como novo Don. Gosto dessa alteração porque faz mais sentido narrativamente. Por que Michael autorizaria a ação de Vincent pra depois dizer que "tentou" e ceder o poder? Faz mais sentido que ele diga que "tentou", ceda o poder e aí Vincent decide o que fazer sem consultar Michael. Ficou melhor assim.
Já no fim da ópera, víamos Anthony abraçando Vincent e os dois trocavam algumas palavras antes de Vincent ver o resto da família e dizer para Anthony: "Vá dizer oi". Isso saiu. E também gosto, porque agora, quando Vincent vê a família de longe, isso o deixa isolado, solitário. Além disso, sempre achei meio arrogante Vincent dar uma ordem a Anthony.
Mas agora vamos às duas grandes mudanças da nova versão: a introdução e o desfecho. E, acreditem, elas fazem muita diferença e trazem leituras novas ao filme.
Já de cara, Coppola alterou a ordem das sequências no início do filme. Antes, começávamos com a festa para celebrar o fato de Michael receber uma comenda do Vaticano e só depois, já com uns 20, 25 minutos de filme, víamos a cena com o Arcebispo Gilday no qual negociam sobre a Immobiliare. Coppola inverteu esta ordem e agora o filme abre com a conversa com o Arcebispo. Isso é muito, muito, muito bom. Por vários motivos: primeiro, porque cria uma rima com os dois filmes anteriores (o novo plano de abertura passa a ser quase idêntico ao da Parte 1, incluindo a inclinação da cabeça do Don); segundo, porque estabelece imediatamente o ponto central da trama, que é a negociação com o Vaticano; terceiro, porque agora, quando vemos a festa, a Comenda recebida por Michael muda completamente de contexto, vindo como consequência do acordo, não como primeiro passo; quarto, porque a presença do Arcebispo na festa se torna mais reveladora; quinto, porque quando Mary dá o cheque ao Arcebispo, já sabemos o destino que o dinheiro provavelmente terá e que ela talvez esteja sendo usada como testa-de-ferro.
Este último ponto, por sinal, ajuda a transformar Mary em uma jovem ainda mais ingênua e ansiosa para agradar o pai e se aproximar deste - e isso, por sua vez, torna a performance de Sofia Coppola mais eficaz por infantilizar mais a personagem.
Sobre isso, por sinal, devo dizer que sempre apontei como a inexpressividade de Sofia Coppola não comprometia o filme porque se encaixava na personagem (mesmo que por acidente). Mary é uma jovem tímida, insegura e ansiosa. Mas talvez agora fique mais claro pra todos.
Ah, sim, e sexto: ao colocar a festa depois da reunião com o Arcebispo, toda a postura de Michael se torna mais fácil de compreender. Muita gente costuma reclamar que o Michael da Parte III é muito diferente, mais expansivo, do que o das duas primeiras partes. E é. Mas com razão, já que é um homem infinitamente mais leve porque finalmente a Família Corleone está "legítima" - algo que ele tentou fazer a vida toda. Michael nunca se sentiu confortável como Don, ao contrário de Vito e Santino. Lembrem-se: ele sentia vergonha da Família. Além disso, Kay sempre o fez se sentir culpado e embaraçado. Se Apollonia era a esposa ideal para um mafioso por compreender e aceitar aquele mundo, Kay era a típica WASP e Michael nunca se sentiu à vontade por saber que ela o condenava. Agora, porém, como a primeira cena traz Michael dizendo que a Família só tem negócios legítimos, talvez fique claro para mais pessoas porque ele está tão diferente. Além disso, a carta que ele escreve para os filhos, que antes abria o filme, fica mais eficaz na nova posição: como já sabemos que os negócios da Família são legítimos, a carta expressa seu desejo de se reaproximar dos filhos como uma continuação desta nova etapa, não aparecendo de modo tão súbito, logo no início. O filme ficou mais forte com essa mudança.
E agora... o desfecho.
Ah, o novo desfecho.
Há algo muito interessante no novo desfecho, mas há também algo que considero desastroso.
Na nova versão, o filme se encerra antes que Michael caia da cadeira e morra cercado pelos cachorros. Ou seja: Michael termina o filme vivo. Mas esse não é o problema central pra mim; até vejo a beleza disso, pra ser sincero. Sim, eu amo o final original porque fazia uma rima e um contraponto ao da Parte 1: se Don Vito morria sob uma luz quente, no meio das plantas e brincando com o neto, Michael morria sob uma luz fria, no meio da terra e cercado por cães. Um resumo da vida que cada um levou. No novo desfecho, porém, quando Michael coloca os óculos escuros, há o fade final - e aí o mais importante: surge, na tela preta, uma frase; o único elemento realmente novo desta versão além do título.
"Quando os sicilianos desejam a você ´Cent´anni", isto significa ´por uma longa vida´. ... e um siciliano nunca esquece."
Então, a primeira parte desaparece e "... e um siciliano nunca esquece" permanece por mais um ou dois segundos.
A implicação é clara: em vez de morrer, Michael está condenado a viver muito, mas sempre torturado por tudo que perdeu e destruiu. De certo modo, é um destino ainda mais trágico do que o original - e como o filme se chama A Morte de Michael Corleone, a ideia de que ele já está morto mesmo em vida se torna ainda mais forte. Em essência, Michael realmente morreu, mas com a punição de permanecer vivo para saber disso.
Eu gosto deste final. Não sei se gosto mais ou menos do que o original (como falei, amo a rima entre as mortes de Vito e Michael), mas gosto muito. São totalmente diferentes em sentido, mas igualmente eficazes.
Só que aí Coppola tropeça em um detalhe muito feio.
Na versão original, entre a escadaria da casa de óperas e a imagem de Michael velho, a Parte III trazia flashbacks de Michael dançando com Mary (na Parte III), com Apollonia (na Parte I) e com Kay (na Parte II). Agora, há apenas a dança com Mary.
Não, não, não.
Os três flashbacks são maravilhosos por dois motivos: primeiro, por trazerem cenas de cada um dos filmes (isso é muito elegante); segundo, por ressaltar como Michael perdeu/destruiu todas as mulheres importantes de sua vida. Ao deixar só Mary, Coppola quer salientar como a morte da filha foi a maior tragédia da vida de Michael - e ok, claro que foi. Mas ao tirar as outras duas, o filme deixa de ressaltar como nada na vida de Michael valeu a pena e como este deixou um rastro de destruição.
Esse é o único elemento da nova versão que eu realmente lamento: a remoção destes dois flashbacks.
Ambas as versões - e insistirei nisso até morrer - são maravilhosas. Passou a ser clichê atacar a Parte III (mesmo ela tendo sido bem recebida pela crítica na época e ter sido indicada a vários prêmios), mas sempre achei que era por Sofia Coppola ser um alvo fácil. Ver os três filmes em sequência, como faço todos os anos, é algo que salienta a força do terceiro: as rimas com portas e janelas nos três filmes, das estruturas, dos temas principais; o fato de Kay ser vista saindo através de um batente quando Michael ouve sobre Tommasino; a composição de Vincent, que inclui gestos, traços e características de Vito, Santino, Fredo e Michael; a procissão que resulta na morte de Zasa fazendo eco à da morte de Don Fanucci na Parte 2... tudo se encaixa.
Aliás, até a metáfora central da Família Corleone como sendo a história da "América" no pós-guerra se encerra perfeitamente com a morte de Mary. No primeiro filme, vemos a América vencendo os inimigos; no segundo, expandindo seus territórios; no terceiro, sendo atacada em seu solo. Sempre falei que, como metáfora, a Parte III de certo modo "previu" o 11 de Setembro - era inevitável que, depois de décadas de intervenções em outros países, os EUA fossem atacados em seu próprio solo e civis morressem (Mary). E numa coincidência que sempre me espanta, até a forma como Mary morre, caindo verticalmente, remete à queda do World Trade Center.
A Morte de Michael Corleone é, em suma, uma versão que em certos momentos consegue ser ainda mais sólida (pela mudança no início e por alguns dos instantes excluídos), mas que não posso abraçar totalmente por causa dos dois flashbacks finais removidos.
Então qual versão será “canônica" para mim? Esta é a beleza da Arte: como ambas estão na minha mente, existem, estão no mundo, posso combiná-las. A "minha" versão tem a estrutura deste Coda, mas inclui os três flashbacks, Michael morrendo ou não. (Gosto de ambas as ideias.)
Resumindo: não reconhecer o brilhantismo da Parte III é absurdo.
Também defendo demais o terceiro filme - qualquer um que veja a trilogia como um grande filme deve ir por esse caminho. E me divido muito com o final, como você. Me parece que esse novo final combina mais com a ideia de estarmos acompanhando nos três filmes à tragédia de Michael, mas a rima final com a morte do pai sempre foi muito forte comigo, principalmente porque os três filmes estabelecem esses paralelos constantes. As janelas dos escritórios nos três filmes ou os fades na montagem do segundo filme são paralelos muito fortes. Esse final aqui complementa demais isso pra mim
Eu particularmente gosto muito da cena em que a Connie ordena o assassinato na Igreja porque oferece mais um comentário à essa questão religiosa que sempre é muito forte nos filmes, desde o batismo passando pela morte de Fredo, a rima das mortes de Fanucci e Zasa, o plano aberto da mesma da Igreja do primeiro e do terceiro filmes, o próprio uso da Igreja como elemento central no terceiro filme ou a promessa que ele faz colocando a vida dos filhos e logo mais pagando por isso. Ter a Connie dando aquela ordem numa Igreja, abaixo da imagem de Cristo, é muito simbólico pra mim de como essa relação com a fé pregada e a fé executada sempre foi muito forte. Mais à frente tem aquela montagem maravilhosa de três planos mostrando o papa morto, o cristo crucificado na Ópera e a imagem de Mary que eu acho fenomenal, três vítimas unidas pela montagem.
Eu adotaria a maior parte das mudanças, realmente. Inclusive o início, que sempre achei muito bom na versão antiga, melancólica, mas que faz muito mais sentido não só pela rima mas pelo desenvolvimento posterior. A famosa comparação entre as três fotos dos três filmes nas três celebrações de fundo religioso fica com ainda mais sentido quando a gente vê aqui a Igreja no centro da foto, e Michael e a família totalmente separados.
Esse terceiro filme é uma das grandes obras dos anos 90. Lamento demais que a ideia massiva do público sobre ele seja tão inferior
Pablo, notei que a Parte III original "sumiu" dos streamings e agora só encontramos a nova versão. Será que está nos planos da Paramount (e do Coppola, talvez) substituir oficialmente o filme original pela Coda? Gosto da nova versão, mas fico triste de restringirem o público de assistir a original...